Em um determinado período artístico da carreira de Jean-Michel Jarre, quando ele ainda não era famoso e não tinha lançado Oxygene (1976), ele trabalhou para diversos artistas ajudando na mixagem, produção e até a compor letras. Isso lhe deu segurança para produzir e criar seus próprios trabalhos posteriores e ajudou financeiramente a investir cada vez mais em seu próprio estúdio particular. Quando ele estava na Disques Motors (futura Disques Dreyfus), o proprietário Francis Dreyfus (1940-2010), pediu ao então jovem Jean-Michel, ajuda para produzir o músico Christophe (1945-2020), que enfrentava um período de baixa. Uma parceria que deu resultados positivos onde ele também ajudaria outros grandes artistas como Françoise Hardy e Patrick Juvet (1950-2021).
FILHO INDESEJADO
Foi mais ou menos nesse período, por volta de 1975, que Jarre passou a trabalhar com um jovem cantor francês chamado Gérard Lenorman. Nascido como Gérard Christian Éric Aumard em 9 de fevereiro de 1945, no final da II Guerra Mundial, Lenorman é fruto de um amor proibido entre uma mãe francesa, de apenas 16 anos, e um soldado alemão durante a ocupação nazista da França (1942-1945). Ele nasceu na maternidade do Château de Bénouville, onde freiras acolhiam jovens em dificuldades. Ter filhos sem ter se casado e ainda com um soldado inimigo era bastante perturbador para a sociedade do pós-guerra na França. Muitas mulheres foram execradas na rua por terem namorado ou se relacionado com os ocupantes nazistas.“Para ela [sua mãe] eu era a criança maldita, a criança da vergonha”. Mesmo que sua mãe tenha refeito sua vida anos depois com um homem que Gérard chama de “cara legal”, nada mudou. “Para mim, o terror continuou”, revelou o cantor. “Fui tratado com severidade. Não desisti disso, principalmente quando foi a minha primeira infância que sofreu, e cujas consequências ainda me traumatizam por muito tempo. Eu era algo para se odiar!”
“Nós nos perguntamos por que há um momento em que isso é desta forma?”, continuou Gérard Lenorman, que cortou os laços com a sua mãe. “Depois que acabou, acabou. E eu fiquei bastante partido por causa disso. E então eu fiz minha vida e parei de pensar sobre isso porque é inútil. São pedras pesadas. É demais. Eu voei depois”. Foi só aos 35 anos de idade, que ele descobriu que o pai era um ex-soldado nazista, quando recebeu o telefonema de uma jovem que se revelou ser sua meia-irmã. “O pior de tudo é que naquele dia eu estava em um avião indo para Berlim. Ainda sinto arrepios nos olhos. Fiquei sabendo então que meu pai, quando não usava uniforme nazista, era músico. Você não pode ser inventado”. Seu pai era um soldado alemão chamado Erich, violinista e maestro civil. Jamais o encontraria (no dia seguinte a esta revelação, ainda no avião, escreve a canção Warum Mein Vater – Pourquoi Mon Père sobre este assunto).
Durante sua infância, chegou a morar em um orfanato de Saint-Vincent-de-Paul por alguns meses aos 9 anos. Em seguida, sua mãe, uma mulher violenta e autoritária, casou-se quando ele tinha 10 anos.
“Mãe. Uma palavra mágica que eu nunca pronunciei para se dirigir à minha mãe, que me teve muito jovem, aos 16 anos. Por outro lado, nasci Lenorman, sou Gérard Lenorman. Existem causas e efeitos indesejáveis, mas natureza é natureza”, ele revela. Em sua última obra, o cantor ainda dedicou uma música à mãe. Nela, ele declarou, apesar de tudo: “Te amo mais do que a loucura”.
UM ACIDENTE QUE QUASE CUSTOU-LHE A VIDA
Aos 12 anos, ele escreveu sua primeira música, que apareceu alguns anos depois em seu primeiro disco: “Le Vagabond”. Por volta dos 14, ele se juntou a algumas orquestras locais como cantor. Aos 16, se emancipou e trabalhou em uma fábrica enquanto se apresentava à noite em bailes regionais e no Club Méditerranée, onde começou a fazer seu nome. Aos 18 anos, foi visitar sua avó normanda, quando um grave acidente de carro o imobilizou por um ano. Isso trouxe muitas consequências. Ele aproveitou esse descanso forçado para escrever canções. “Fui atingido de frente com um caminhão. A [minha] vida começou após este acidente”. Ele ainda tirou proveito disto: “Todos os hospitais estavam fechados e, graças a isso, tive a sorte de ser internado em uma clínica particular quando já estava enlouquecendo”.
Depois de um início tímido como compositor de canções para Brigitte Bardot e Sylvie Vartan, Gérard Lenorman viu sua carreira decolar graças ao musical “Hair”. Responsável por substituir o intérprete da canção “Let us Enter The Sun”, o cantor assume o papel de Claude Bukowski em 1970. Com sua franqueza quase adolescente e seu olhar cheio de ternura, Gérard Lenorman seduziu as multidões e teve grande sucesso no palco do teatro Porte Saint-Martin. E sua atuação artística não escapou aos produtores das maiores gravadoras. Com sua voz aguda e seu personagem revolucionário com aspirações hippie, o Pequeno Príncipe da canção francesa assinou com o selo CBS e gravou seu primeiro single intitulado “He”. Impulsionado para sua carreira solo, Gérard Lenorman deixou a empresa que trabalhava em abril de 1971. Uma bela vingança à vida na qual quase perdeu em um grave acidente.
JARRE COMPÕE PARA LENORMAN
Jean-Michel Jarre se envolveu com Lenorman em 1975, quando estava gravando seu 4° álbum, intitulado “Gérard Lenorman”. Das 11 canções do LP, Jarre ajudou a compor duas, em parceria com o letrista francês Maurice Vidalin (1924-1986). As faixas foram “La Fille Que J’Aime” e “La Belle Et La Bête” (que Jarre reciclaria anos depois como “Second Rendez-Vous”). No mesmo ano, Lenorman levou seu álbum ao Olympia, onde cantou seus grandes sucessos e também algumas faixas inéditas, sendo duas delas de autoria de Jean-Michel Jarre: “La Parade” e “La Mort du Cygne” (que se tornaria “Third Rendez Vous” de Jean-Michel Jarre) que resultaram no álbum duplo gravado ao vivo “Olympia 75”. Posteriormente, Jarre e Lenorman voltariam a trabalhar juntos em seu sétimo álbum de estúdio, “Au Delà Des Rêves” de 1977, desta vez regravando “La Mort Du Cygne”.
Depois deste trabalho, cada um seguiu seu caminho: Jarre passou a se dedicar à sua carreira internacional e Lenorman gravou outros álbuns, mas não conseguiu atingir mais as paradas de sucesso e vem se mantendo assim até recentemente.
Hoje, calmo, Gérard Lenorman reconhece porém que este passado difícil ainda deixa rastros na atualidade: “Sou temperamental com os reflexos de um tipo mal na pele”. Graças à sua esposa, ele finalmente cura suas feridas: “Marie pôs o sol em meus pensamentos. Ela me ensinou a andar, revelou-me a mim mesmo”. Uma bela lição de esperança.
Fontes: Public.Fr / Gala.FR
Texto e tradução de Ricardo Melo
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