JEAN-MICHEL JARRE: O GÊNIO ELETRÔNICO DE NOTRE-DAME

O compositor eletrônico Jean-Michel Jarre, conta ao jornalista Sarfraz Manzoor, como seu avatar tocará ao vivo na Catedral no Réveillon.

Entrevista de Sarfraz Manzoor para o jornal “The Times” – 26 de dezembro de 2020 | Foto: Jean-Michel Jarre no Microsoft Theatre em Los Angeles (2017) © MOVIESTORE / REX / SHUTTERSTOCK

Jean-Michel Jarre está relembrando o sonho que mudou sua vida. Era 1976, Jarre tinha 28 anos, e passara os dez anos anteriores fazendo músicas com pouco sucesso. O francês frequentemente ouvia música em seus sonhos. Mas naquela noite em particular, ele sonhou que viu e ouviu cinco notas musicais suspensas no ar. As notas se tornariam instantaneamente reconhecíveis, como o ponto principal de seu álbum Oxygène.

O álbum, que apresenta uma capa do planeta Terra se descascando e revelando um crânio (para enfatizar a preocupação de Jarre sobre as mudanças climáticas), foi lançado em dezembro de 1976, e vendeu cerca de 15 milhões de cópias. Isso transformou Jarre em uma estrela da música eletrônica.

“É quase como se eu não fosse o responsável por isso”, lembra Jarre via ‘Zoom’ de seu apartamento em Paris. Ele usa óculos escuros, apesar de estar dentro de casa, e aos 72 anos, poderia facilmente se passar por 20 anos mais jovem.
“Tive uma conversa com Paul McCartney quando passamos o Natal com nossas famílias, e ele estava falando sobre como ‘Yesterday’ veio a ele em um sonho. É assustador se sentir que não é realmente o responsável.”

Oxygène foi seguido por outros marcos da música eletrônica – Équinoxe, Les Chants Magnétiques e Rendez-Vous – que venderam mais de 80 milhões de álbuns.

Jarre, que está em seu quarto casamento (o segundo foi com a atriz Charlotte Rampling, que terminou em 1997, após uma relação de 20 anos), tornou-se associado a shows ao vivo, cada vez mais espetaculares para multidões gigantescas. Ele foi o primeiro artista ocidental a ser convidado a se apresentar na República Popular da China, e quando tocou na Place de la Concorde em Paris, para comemorar o Dia da Bastilha em 1979, reuniu um público de um milhão, que lhe rendeu um lugar no Guinness Book of Records. Recorde que foi quebrado outras vezes por ele mesmo, com 2,5 milhões, durante um concerto em Paris, em 1990, e 3,5 milhões em Moscou, sete anos depois.

– São números inimagináveis. Como foi tocar para uma multidão tão grande?
“Eu estava no bicentenário da Revolução Francesa e dois milhões e meio de pessoas estavam lá”, diz ele. “Lembro de virar as costas para me certificar de que não era um erro, que não era outra pessoa que eles estavam olhando.”

A noção de uma multidão tão grande é particularmente inimaginável nesses tempos de Covid, mas Jarre, sempre inovando, está abraçando as possibilidades da Realidade Virtual, para o Welcome to the Other Side, um concerto de Réveillon em Paris. O músico francês estará em um estúdio perto da Catedral de Notre-Dame, e várias câmeras de Realidade Virtual estarão filmando, enquanto ele executa um set de 45 minutos com músicas de seu recente projeto Electronica, e novas versões remixadas de seus clássicos Oxygène e Equinoxe. A filmagem será convertida em tempo real para um avatar do músico, que aparecerá dentro da Catedral de Notre-Dame. Os fãs poderão assistir, não só em uma tela normal (como fariam em uma apresentação ao vivo filmada), mas também ao colocar óculos de Realidade Virtual. Assim, eles poderão entrar na Catedral, no local onde o público normalmente estaria, e ver Jarre no palco na frente deles. A apresentação será gratuita para visualização, e estará disponível por 24 horas.

Minha suposição, com base neste ano que passou, é que qualquer coisa com a palavra ‘virtual’ associada, provavelmente será uma grande decepção. Mas Jarre não vê exatamente assim:
“Acho que a Realidade Virtual hoje é exatamente o que o cinema era no início do século XX. É um novo modo de expressão. Isso nunca vai substituir a emoção do ombro a ombro em um festival de música, mas as pessoas que estão isoladas socialmente ou geograficamente, podem se reunir por meio de seus avatares em um mundo de RV “, diz ele.
O francês lembra de sua primeira apresentação em RV há dois anos:
“Eu estava em um palco tocando, mas quando coloquei meus óculos de RV, estava diante de um público – um cara era da Louisiana, uma garota era de Xangai, outro cara estava em Manchester, outro era do Chile. Nós estávamos todos na mesma sala, e em cinco minutos, eu havia esquecido que esses caras eram avatares com cabeças de raposas, cachorros e gatos. Parecia que eu estava em contato com uma nova dimensão.”

A primeira vez que Jarre sentiu essa sensação de novas possibilidades, foi quando tinha dez anos. Ele morava em Lyon, seus pais se separaram cinco anos antes, e seu pai Maurice Jarre (famoso compositor de filmes), foi morar nos Estados Unidos. Jarre ganhou um gravador de seu avô:
“Eu ficava horas na varanda em Lyon, gravando o som da rua. Então, por acaso, um dia toquei a fita ao contrário e, para mim, pensei que era um alienígena que estava falando comigo. E a partir disso comecei a ficar obcecado em mudar os sons.”

Primeiro concerto de Jarre, na Place de la Concorde em Paris, no Dia da Bastilha, 1979
© DOUGLAS DOIG / HULTON ARCHIVE / GETTY IMAGE

Jarre estudou composição musical clássica, e por um breve período, liderou uma banda punk chamada The Dustbins, antes de ficar fascinado com as possibilidades oferecidas pela música eletrônica:
“Sempre me interessei em tentar criar uma ponte entre a música experimental e o pop. E sempre adorei a ideia de que a simplicidade pode esconder a melancolia e a tristeza”.
Foi pensando nessa ligação entre melodia e melancolia, que Jarre teve o sonho que o levou à gravação de Oxygène.

– A primeira vez que ouvi esse álbum foi quando meu professor de inglês, Sr. Dawson, nos disse que iria tocar um pouco de música, e tínhamos que escrever uma história inspirada nisso. Isso foi em 1985, eu tinha 14 anos, e aquela aula me transformou em um fã de Jean-Michel Jarre.
“É uma grande honra para mim”, diz Jarre quando relato essa memória. “É uma abordagem da cultura e da música em particular, que infelizmente não tem no meu país . A França é mais um país de cinema e literatura, e de menos música.”

Isso torna o fato de Jarre, e seu pai, terem alcançado um notável reconhecimento internacional.
“É muito raro ter um músico francês em uma família com uma carreira internacional. Mas ter dois na mesma família é surreal”.
Maurice e Jean-Michel tinham um relacionamento problemático e distante.
“Éramos como amigos vagos, era distanciado.”
Quando seu pai morreu em 2009, Jarre se lembra de estar sobre seu caixão e dizer: “Eu te perdôo. Perdoe-me por não poder ser amado por você.”

Jarre se lembra de uma vez, que o cineasta italiano Federico Fellini, lhe disse que, durante toda a sua vida, ele pensou que estava fazendo filmes diferentes, mas finalmente percebeu que estava fazendo o mesmo filme.
“Paul McCartney é um amigo querido e eu realmente o amo muito. Mas o que quer que ele faça, ele não escapará de si mesmo. Ele sempre escreve a mesma música.”

Jarre com Paul McCartney em novembro de 1982

Um concerto de Realidade Virtual, como o do Réveillon, é muito diferente de seus shows ao vivo tradicionais, exceto em um detalhe:
“Fiquei acordado até as cinco da manhã trabalhando com meu designer de iluminação, alguns artistas gráficos e algumas pessoas no estúdio. É exatamente como se estivesse preparando minha próxima turnê. É a mesma coisa ”, diz ele.

Na noite anterior ao lançamento de Oxygène, em dezembro de 1976, os Sex Pistols apareceram na TV britânica, onde praguejaram ao vivo na televisão, gerando a infame manchete ‘The Filth and the Fury’ (A Sujeira e a Fúria). A música sintetizada fortemente produzida de Jarre, e o som cru da guitarra do punk, podem parecer ter pouco em comum. Mas ambos, observa Jarre, estavam focados no futuro.
“Punk estava dizendo que não havia futuro. E eu estava dizendo: Que futuro?”
Jarre ainda está ansioso – e desconfiado da nostalgia.
“Não estou interessado no passado. O gatilho para mim é explorar algo novo. Meu apetite e curiosidade por Realidade Virtual, são os mesmos de quando eu tinha dez anos e brincava com meu gravador.”

Lembro a Jarre aquela citação anterior de Fellini:
– Qual foi a história de seu filme?
“Acho que eu estava sempre tentando ultrapassar os limites e me interessando mais pelo amanhã do que ontem, e por ter um relacionamento com meu próprio pai.”

O fato de seu pai compor trilhas para filmes como ‘Lawrence da Arábia’, ‘Passagem para a Índia’ e ‘Doutor Jivago’, levou Jarre a evitar deliberadamente compor trilhas sonoras. No entanto, quando pedi a Jarre para descrever sua abordagem ao criar música, ele disse:
“Sempre considerei que, quando estou escrevendo alguma música, estou escrevendo a trilha sonora da história que alguém pode criar ouvindo a música”.

– Parece bastante triste que você evitou deliberadamente compor trilhas sonoras de filmes porque sentiu que era território de seu pai:
“Depois de um tempo, você percebe que nunca poderá escapar de sua herança. Em vez de escrever trilhas sonoras para filmes, escrevi trilhas sonoras para as pessoas.”

A apresentação ao vivo “Welcome to the Other Side” de Jean-Michel Jarre, começará às 22:25 GMT (19:25 pelo horário de Brasília), em 31 de dezembro. Poderá ser assistido em qualquer dispositivo, ou em Realidade Virtual na plataforma VRChat . O áudio completo do evento estará disponível imediatamente após a performance, em todas as plataformas de streaming.

Fonte: Thetimes.co.uk

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