JEAN-MICHEL JARRE: “A IA AINDA É O OESTE SELVAGEM QUANDO SE TRATA DE DIREITOS AUTORAIS”

O músico francês retornou à Itália para a abertura da Bienal de Arquitetura de Veneza. Mas não é só isso: em junho fará uma parada numa exposição em Milão e no mês seguinte, realizará duas performances imersivas na Piazza San Marco e em Pompeia

10/05/2025 | Por: Nicholas David Altea

O músico e pioneiro Jean-Michel Jarre nunca se limitou à música. Ele frequentemente atuou nas fronteiras tecnológicas dela, preferencialmente de forma antecipada ao seu tempo. E é o próprio Jarre quem nos mostra essa relação durante sua apresentação no “Meet Digital Culture Center” de Milão e em suas próximas performances e atividades: “Para os artistas, a tecnologia é, na verdade, a fonte de tudo. Nunca deveríamos esquecer que ela dita os estilos. […]Estamos inventando e criando a Inteligência Artificial com a qual os artistas do futuro gerarão novos gêneros musicais, novos estilos musicais ou novos estilos artísticos.”

Há apenas três anos atrás, falávamos com ele sobre Metaverso e Realidade Virtual. Hoje em dia, mal se menciona isso. Há pelo menos dois anos e meio, a IA é o tema central de qualquer grande discussão — seja sobre trabalho, cultura, segurança, economia, música, cinema ou literatura. Nada escapa, todos os campos são de alguma forma impactados e influenciados.

Portanto, como experimentador tecnológico que é, seu próximo projeto será algo muito amplo e estruturado. Uma “OPERA TOTALE”, no sentido mais completo: som, imagem e IA tornam-se os componentes definitivos de uma viagem imersiva que estimula o público a explorar o futuro da criatividade por meio da sinergia entre homem e máquina. Jarre é o arquiteto e também o comandante dessa jornada. Um itinerário que se desenvolve de maio a novembro, dividido entre Milão, Veneza e Pompeia, unindo a Bienal de Arquitetura de Veneza e o “Meet Digital Culture Center” de Milão.

Primeira parada: “Oxyville” na Bienal de Arquitetura e a apresentação no “Meet” de Milão

Nesta conexão entre Veneza e Milão, temos dois nomes fundamentais: o arquiteto Carlo Ratti (curador da Bienal de Arquitetura) e Maria Grazia Mattei (fundadora e presidente do “MEET Digital Culture Center”). Jean-Michel Jarre foi convidado para a 19ª Exposição Internacional de Arquitetura da Bienal de Veneza (de 10 de maio a 23 de novembro de 2025), intitulada “Intelligens. Naturale. Artificiale. Collettiva”, justamente curada por Carlo Ratti, que afirma: “Durante toda sua carreira, Jarre integrou perfeitamente diversas formas de inteligência — exatamente como o tema da Bienal deste ano.”

O artista francês apresenta “Oxyville”, uma instalação musical imersiva criada com a direção artística de Maria Grazia Mattei e do “Meet Digital Culture Center”, inspirada em seu último álbum Oxymore. Projetada com som espacial em 360°, a obra explora a conexão entre áudio 3D e espaço arquitetônico, onde o som se torna o material primordial para construir uma cidade imaginária.

Inspirada pelos conceitos disruptivos de Luigi Russolo em “A Arte dos Ruídos” (1913) e, mais tarde, por Pierre Henry e Pierre Schaeffer, a obra convida o público a fechar os olhos para experimentar a estrutura e a dinâmica de um espaço arquitetônico unicamente por meio da percepção auditiva.

O som transforma-se, assim, em uma forma de projetar espaços e arquiteturas, deixando para a imaginação do público a tarefa de completar e construir essa cidade utópica, já que arquitetura e som compartilham a característica comum de se desdobrarem em 360°, ao contrário do campo visual, limitado a 140°.

No coração de “Oxyville” está a ideia de que a acústica deixa de ser apenas uma dimensão secundária dos espaços, tornando-se um material central e fundamental. Sons, ruídos e silêncios moldam espaços imaginários que o ouvinte sente ao fechar os olhos. Texturas sonoras tornam-se ferramentas para perceber materiais e estruturas invisíveis. Cada visitante, por meio de um ato de escuta profunda, torna-se o arquiteto de sua própria cidade, traduzindo sons em imagens mentais próprias.

A instalação oferece sessões imersivas de dez minutos, utilizando um sistema dedicado de espacialização sonora para projetar espaços virtuais. A configuração interativa “inteligente” simula diferentes arquiteturas sonoras e atua como um vetor sensorial, estimulando espontaneamente a imaginação do público. Imaginar e construir a sua própria utopia.

“Oxyville” convida o público a explorar uma arquitetura sonora que evolui por meio de atmosferas acústicas contrastantes. Alternando entre a vasta reverberação de uma catedral e a suavidade íntima de uma câmara anecoica, entre outras, permite ao público sentir a escala, os materiais e as texturas dos espaços arquitetônicos imaginados.

De olhos fechados, cada pessoa torna-se um arquiteto, construindo em sua mente uma cidade única moldada pelo som e pela imaginação. “Oxyville” examina como os sons, além de sua função musical, podem tornar-se matéria-prima de uma arquitetura sonora e nos convida a refletir sobre a importância da acústica na criação dos espaços.

A experiência veneziana culminará em novembro com um evento final no “Meet Digital Culture Center” de Milão, onde será apresentada a visão do público sobre “Oxyville”, em um diálogo audiovisual em que artista e visitantes são protagonistas.

Site oficial: https://oxyville.net/

No dia 8 de maio, Jarre postou um vídeo em suas redes sociais faltando dois dias para a abertura da Bienal de Veneza:

“Atualmente estou descobrindo o espaço do Oxyville e vamos começar a passagem de som em alguns minutos. Este projeto faz parte da Bienal de Arquitetura de Veneza. E a inauguração oficial acontecerá em dois dias a partir de agora. Então, temos que terminá-lo. Vejo vocês lá.”

Segunda parada: Promptitude, a exposição no “Meet Digital Culture Center”

De 12 de junho a 7 de setembro de 2025, o “Meet Digital Culture Center” de Milão sediará “Promptitude”, a primeira exposição de obras visuais de Jean-Michel Jarre. Uma espécie de ampliação visual de seu trabalho, para representar a relação criativa entre o ser humano e a máquina.

O prompt torna-se um haicai, um poema breve e iluminador que a IA traduz em retratos de criaturas híbridas. Essas figuras vivem em um espaço liminar, entre o humano e a máquina, sendo fruto do diálogo entre a intenção humana e a execução algorítmica. Elas representam o coração do processo artístico, destacando o papel essencial da linguagem humana para orientar os algoritmos de IA em direção a resultados artísticos significativos.

Dentro de todo esse conceito, o tempo também se torna determinante, onde a instantaneidade entra em conflito com os ritmos humanos e biológicos da criatividade.

Enriquecendo ainda mais “Promptitude”, está EōN, uma criação sonora generativa projetada por Jarre há alguns anos, que continua evoluindo e se expande infinitamente sem jamais se repetir. Uma experiência fluida e imersiva onde cada instante sonoro é único, ampliando o conceito de geração do visual ao acústico em uma vivência sensorial completa.

Terceira parada: os concertos em Veneza e Pompeia

O terceiro e último momento fundamental é a maior expressão real de Jean-Michel Jarre: a música ao vivo.

Dois concertos estão programados:

  • 3 de julho na Piazza San Marco, em Veneza
  • 5 de julho no Anfiteatro Degli Scavi, em Pompeia

Locais de grande peso cultural e histórico, ambos patrimônios da UNESCO. Dois palcos para performances imersivas nas quais a música se entrelaçará à experimentação visual, graças a uma encenação vanguardista que permitirá a Jarre transformar os espaços em ambientes sonoros tridimensionais, onde o público poderá viver uma experiência sinestésica única.

No dia 3 de julho de 2025, na Piazza San Marco, Jarre realizará o sonho antigo de se apresentar naquele local. O evento é organizado pela “Veneto Jazz”, em colaboração com a Prefeitura de Veneza, como parte da 17ª edição do “Veneto Jazz Festival”.

No dia 5 de julho, será a vez do Anfiteatro Degli Scavi de Pompeia, no festival “BOP – Beats of Pompeii” (organizado por Peppe Gomez da “Blackstar Concerti”, com o patrocínio da Prefeitura de Pompeia, do Parque Arqueológico de Pompeia, do Ministério da Cultura e da Região da Campânia). Será uma ocasião onde a música de Jean-Michel Jarre dialogará com as ruínas de uma das cidades mais fascinantes do mundo antigo.

Em entrevista, Jarre fala sobre sua relação com a arquitetura, a IA e as transformações culturais profundas que ela está promovendo

Como você conseguiu encontrar uma conexão entre música e arquitetura?

“Na verdade, se eu não tivesse me tornado músico, teria sido arquiteto. Sempre vi muitas conexões. Arquitetura e música lidam com espaço e tempo. A acústica é tridimensional e, em termos físicos, está ligada à manualidade, à pureza de uma linha que se pode traçar. O primeiro gesto de um arquiteto é simplesmente a mão traçando uma linha. Para a música é a mesma coisa. Qualquer instrumento que você use — computadores, sintetizadores, violinos ou simplesmente um pedaço de papel com um lápis.”

Quais foram as características mais importantes que te atraíram em Veneza e Pompeia para o seu show?

“Tocar na Piazza San Marco e em Pompeia era um sonho antigo, por várias razões. Muito tempo atrás eu tinha um projeto para a praça de Veneza que não se concretizou por causa do que aconteceu com o famoso concerto do Pink Floyd: de repente, ninguém mais conseguiu se apresentar lá. E Pompeia é um lugar mágico. Quando falamos da conexão entre música e arquitetura, esses lugares são como anfiteatros — representam o primeiro conceito imersivo em termos arquitetônicos e performáticos. Você pode estar no centro de um anfiteatro como Pompeia e ser ouvido ao redor. É como se fosse o Dolby Atmos de 2.000 anos atrás.”

Você falou sobre a “era de ouro” da Inteligência Artificial. O que te faz pensar isso?

“Porque, como todo movimento artístico emergente, ela depende da imperfeição das tecnologias emergentes — que são limitadas e às vezes frustrantes. E a ideia do ‘menos é mais’ é fundamental no processo criativo, seja o que for que você esteja fazendo. Quando usei IA pela primeira vez, pensei em quando comecei a trabalhar com samplers. Lembro que o Fairlight era considerado o Rolls-Royce do sampling nos anos 1980 — mas só podia samplear 0,8 segundos em 8 bits, o que hoje é nada. Mas foi com essas limitações que criamos experiências muito interessantes e processos únicos. O mesmo vale para os primórdios do cinema mudo e em preto e branco. Sem som, era preciso superar essas limitações para criar obras-primas. Com a IA é a mesma coisa. Provavelmente, daqui a 10 anos, talvez eu não esteja mais tão interessado nela, porque será perfeita demais. No momento, ela é tão imperfeita que permite criar momentos poéticos. E acho que o conceito de ‘menos é mais’ é a base de uma abordagem poética.”

Muitos novos artistas de hoje têm muito medo da IA. E você, tem medo?

“É curioso como, com o tempo, artistas visuais e músicos se tornaram talvez os mais conservadores. É quase um paradoxo o que estou dizendo. Pensaríamos que os artistas deveriam agir de forma oposta — entusiasmados com o desconhecido — mas não é assim. Pintores viam a fotografia como uma ameaça. O teatro via o cinema como ameaça. O cinema viu a TV como ameaça. A TV viu a Internet como ameaça. E agora a Internet vê a IA como ameaça. É uma história infinita. Então, na verdade, como diziam nossos avós, no final das contas, você precisa domar e explorar.”

Muito se falou sobre ilustrações no estilo “Studio Ghibli” feitas com o ChatGPT. Com a IA, o maior problema são os direitos. O que você pensa sobre isso no campo da música?

“Fui presidente da CISAC, a Confederação Internacional das Sociedades de Autores e Compositores. Sou um ativista dos direitos de propriedade intelectual e, no momento, a IA ainda é o velho oeste. Como a Internet era, tempos atrás.”

É uma era de pirataria para a IA…

“Exatamente. Mas precisamos entender que os jovens que desenvolvem algoritmos amam música, amam filmes, amam arte — mas não estão conscientes dos danos colaterais que podem causar. Não sou contra a ideia de que a criação tem valor. Então precisamos entender para quem devemos nos dirigir, encontrar a linguagem certa — a que já usamos com os direitos autorais na música, por exemplo. Foi uma grande batalha, mas hoje o YouTube paga direitos autorais. Com a IA, o problema é tecnológico, porque os algoritmos hoje não sabem mais o que estão usando, e já é tarde demais. O que precisamos fazer agora — e é o que sempre achei que deveríamos ter feito com os GAFAM [Google, Apple, Facebook/Meta, Amazon e Microsoft] — é tentar fazer com a IA. Dizer: ‘Ouçam, pessoal. O conteúdo criativo é o alicerce da tecnologia de vocês, da IA. Sem a gente, vocês estariam recolhendo dados de um dicionário. O valor das suas empresas se baseia nos nossos conteúdos’.”

E como isso deveria ser feito?

“Precisamos receber uma fatia do novo bolo digital 3.0. Estabelecer um tipo de acordo comercial. Não se trata de implorar: ‘Por favor, nos deem uma porcentagem…’. Não, não. ‘Vamos pegar uma fatia do bolo’. Depois que essa fatia estiver conosco, será difícil distribuí-la de forma justa, mas pelo menos o dinheiro estará do nosso lado. Acho que essa é a única solução. E quando propus isso na Cúpula de Inteligência Artificial, estavam presentes pessoas como Sam Altman (OpenAI), Arthur Mensch (Mistral), e outros da DeepMind (Google), e eles disseram: ‘É muito interessante. Claro, as empresas de direitos autorais nos ameaçam’.”

Não é nada fácil…

“Precisamos encontrar uma forma. Os jovens desenvolvedores pensam: ‘Amanhã qualquer um poderá soar como Michelangelo, os Beatles ou Miles Davis graças à IA’. O valor dos artistas será diminuído, porque todos serão artistas. E esse, para mim, é um perigo que precisa ser enfrentado agora.”

Fonte: Wired

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