Em 1986, as famosas profecias feitas pelo vidente Notradamus causaram pânico aos católicos e colocaram os encarregados da segurança do Papa João Paulo II (1920-2005) em alerta. Segundo a previsão, sua Santidade corria um sério risco de ser assassinado caso insistisse em visitar a cidade francesa de Lyon nos dias 4, 5, 6 e 7 de outubro daquele ano.
O célebre vidente francês escreveu que “o pontífice romano deve evitar aproximar-se da cidade banhada pelos dois rios. Caso contrário, derramará seu sangue quando a rosa florescer”.
Desde o anúncio da visita papal, os jornais locais passaram a receber através de cartas, telegramas e telefonemas (lembrando que em 1986, ninguém tinha Internet ainda), várias ameaças de morte contra o Papa. O mesmo aconteceu com a Prefeitura e o Arcebispado de Lyon que, com receio das ameaças, entraram em contato com a Santa Sé perguntando se não seria mais sensato adiar a visita. Afinal, Lyon é a única cidade da França que é banhada por dois rios: o Ródano e o Saône.
Como se não bastasse, a França passava por problemas internos de nível social envolvendo grupos separatistas como o “Action Directe” que habitualmente fazia ameaças de bombas. O terrorista libanês Georges Ibrahim Abddallah estava preso em Lyon, após cometer um atentado na Rue de Rennes, em Paris, no dia 17 de setembro daquele ano, matando 7 pessoas e deixando outras 55 feridas. Pra terminar, o julgamento do criminoso de guerra nazista Klaus Barbie estava acontecendo no Palais de Justice, no mesmo local onde foi montado o palco.
O jornalista Jean-Louis Remilleux, amigo e autor da primeira biografia de Jean-Michel Jarre, se reuniu com o Cardeal Albert Decourtray, para discutir a possibilidade da relização de um grande concerto de Jarre na cidade em homenagem ao Papa, com previsão para acontecer no dia 5 de outubro. Remilleux organizou uma reunião entre o músico e Jacques Vergès, um advogado muito famoso na França e conhecido por sua relação com o terrorismo. O encontro aconteceu no bar do Hotel Raphael, na Avenue Kléber, em Paris. Jarre disse para Vergès: “Você sabe que vou realizar um concerto em Lyon. Faça alguma coisa, peça a seus amigos para que fiquem quietos durante esta noite, apenas por uma noite”. Vergès respondeu: “Ok, vou ver o que posso fazer”.
João Paulo II descartou qualquer possibilidade de cancelar a visita. Declarou que estava muito mais preocupado com sua segurança na Praça de São Pedro, no Vaticano, onde foi baleado por Ali Agca em 1981, do que naquela visita à França. E para reafirmar sua descontração, dispensou o uso do famoso “Papamóvel”, veículo de vidros blindados que costumava usar. Um homem-bomba foi preso poucos dias antes do concerto, o que reforçou a paranoia das autoridades de segurança em torno de um evento tão sensível. A polícia procurava por explosivos em todos os lugares no local do show, até mesmo embaixo do palco.
Milhares de pessoas começaram a se aglomerar no início da tarde daquele domingo, subindo em árvores, tetos de caminhonetes, nas sacadas, varandas, ou nos telhados de suas casas. Algumas ficaram espremidas nas grades da praça Bellecourt. A partir das 21:00, com um calor de verão, os motoristas tentaram em vão, evitar o engarrafamento que parou a cidade. Meia hora depois, a polícia evacuava apressadamente a ponte do Rio Saône que ameaçava desmoronar com o peso da multidão. Houve tumulto e mais de 100 pessoas desmaiaram. Algumas ficaram levemente feridas e tiveram dificuldades em buscar atendimento médico devido à multidão.
Após a benção papal, Jarre deu início ao concerto com a Colina de Fourvière sendo iluminada durante 90 minutos por holofotes, fogos de artifício e imagens de personalidades como Madre Teresa de Calcutá, Lech Walesa, Mahatma Gandhi, Ron McNair, e claro, do Papa João Paulo II, que foram aparecendo como por encanto nas fachadas dos prédios. Na La Tribu, a ausência de Dominique Perrier foi notada pelos fãs, e dois novos membros se juntaram ao grupo: o baixista Guy Delacroix e o percussionista Dino Lumbroso. Jarre também convidou duas orquestras e um coral de Lyon, além do saxofonista americano Kirk Whalum, que tocou “Ron’s Piece” e encerrou o espetáculo com um belo solo final durante “Rendez-Vous IV”. Nenhum incidente mais grave foi registrado e o evento foi considerado um sucesso.
No primeiro andar da arquidiocese de Lyon, o Papa jantava uma sopa enquanto Jarre tocava para um público estimado em 800.000 pessoas. O concerto foi ouvido muito bem na arquidiocese. Por causa do movimento no cais do rio Saône, com buzinas intermináveis devido aos engarrafamentos, o tráfego foi interrompido. Presos no trânsito, quinze pessoas perderam o jantar com o Papa. “A decepção delas foi grande”, confirmou um padre lyonense, autor da foto abaixo. “Santidade, este concerto é para você! “, disse o Cardeal Decourtray ao João Paulo II, que respondeu brincando: “Não é para mim, é para o Papa!”
Após participar de um concurso de fotos do concerto de Houston, o fotógrafo belga Jacques de Selliers foi convidado por Jarre para tirar fotos do concerto de Lyon. As fotos foram publicadas em seu site oficial, e Selliers descreveu detalhes do evento:
“Depois do Rendez-vous Houston, Jean-Michel Jarre convidou George O Jackson (o vencedor do concurso de fotos de Houston) e eu para fotografar seus mega-shows seguintes. O primeiro foi o de Lyon, na França, em 5 de outubro de 1986, por ocasião da visita do Papa João Paulo II.
Voamos juntos de Houston (onde nós dois estávamos morando) alguns dias antes do concerto. Pegamos nossos crachás e passamos os três dias anteriores ao show no palco, tirando fotos dos ensaios.
Também nos preparamos para o dia do show: consegui encontrar um excelente lugar no telhado de uma casa em frente ao Rio Saône, de frente para o palco, para o qual negociei o melhor lugar com os proprietários.
O dia do show foi agitado. Toda a cidade foi bloqueada, com segurança máxima por causa da profecia de Nostradamus. A visita do Papa terminou sem problemas no final da tarde com uma bênção de boa noite na Basílica de Fourvière, que foi transmitida pelo sistema de som do concerto e aparece no álbum ao vivo Houston/Lyon.
Ao anoitecer, fui com meu equipamento para o local escolhido em cima da casa. Mas infelizmente já estava cheio de pessoas e não havia mais espaço para os meus tripés. Então eu finalmente encontrei um bom ponto próximo ao rio, bem em frente à área VIP. E à noite, quando o concerto começou, eu estava pronto para disparar minhas duas câmeras montadas nos tripés.
Embora este concerto não tenha chegado ao Guinness Book foi fabuloso. Lyon é a cidade natal de Jean-Michel Jarre, e ele conseguiu usar soberbamente a cidade como cenário para seu concerto. O palco estava em frente ao antigo Palais de Justice, os prédios foram iluminados por toda a cidade, holofotes gigantes e os fogos de artifício foram disparandos por toda a colina Fourvière. A vista do rio era linda!
Várias de nossas fotos foram usadas pela agência SIPA Press para ilustrar alguns dos livros de Jean-Michel Jarre. Além disso, duas das minhas fotos foram usadas na capa do álbum Houston/Lyon”.
Para Jean-Michel Jarre, foi um retorno às raízes da infância: sua antiga residência não fica longe do local. A cidade quis criar um evento memorável para a ocasião, e ninguém melhor do que um pioneiro da música eletrônica nascido em Lyon para refletir o contraste da cidade.
Jarre lembra com emoção do encontro com o Papa. Ele teve a oportunidade de conhecer João Paulo II pessoalmente um dia antes do show, por 45 minutos. O músico conversou com ele sobre a Polônia e o movimento Solidarnosc. “Você sendo católico ou não, a personalidade do Papa era extraordinária”, disse o tecladista francês.
“Desde a primeira música, a medida que o tempo ia passando e eu ia tocando no palco, fui percebendo o que estava acontecendo comigo: tocando na minha cidade natal, na confluência não só de dois rios, mas também das minhas raízes e da minha vida como artista”
Quando se sabe um pouco sobre Lyon, este evento não pareceu ser tão surpreendente. A cidade sempre foi dividida entre a forte herança católica (em 2014, 60% dos habitantes se declararam católicos) e a cultura eletrônica onipresente (há uma dúzia de festivais eletrônicos na cidade). Lyon ouviu as duas culturas da melhor forma possível. A coesão geralmente muito difícil, pareceu quase lógica e, acima de tudo, poética.
Fontes: Revista Contigo! (25/08/1986)|Correio Braziliense (07/10/1986)|Jacques de Selliers|Lyonplus|vl-media.fr|https://rcf.fr/
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