Décadas após o lançamento do mítico álbum “Oxygène”, Jean-Michel Jarre continua fazendo música para respirar. Desafiado pelo fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado, o artista francês criou a trilha sonora da Exposição “Amazônia”
Não sabemos se o fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado pensou em Jean-Michel Jarre quando resolveu, depois de chamar para si o desafio de passar vários anos fotografando a Floresta Amazônica, transformar a sua nova Exposição numa experiência imersiva. Ao escutarmos a música criada pelo artista francês para “Amazônia” (Sony, à venda desde 9 de abril), percebemos contudo, que dificilmente encontraria melhor parceiro. 45 anos depois de transformar o álbum Oxygène num marco da música eletrônica, Jarre inspira-se no “pulmão do mundo” para uma obra que encapsula todas as maravilhas e perigos da Amazônia. Em conversa com o Expresso, ele fala não só da sobrevivência da floresta, como do amigo e “herói dos nossos tempos” Edward Snowden, do concerto que realizou para mais de três milhões de pessoas em Moscou e da familiaridade que sentiu quando visitou Portugal pela primeira vez.
Conhecia Sebastião Salgado antes de ser convidado para esta colaboração na Exposição “Amazônia”?
“Sempre fui um grande admirador do trabalho dele, mas não o conhecia. O convite veio por parte da Philharmonie de Paris, que está organizando esta exposição [onde ficará de 20 de maio a 31 de outubro, seguindo depois para Roma, São Paulo, Rio de Janeiro e Londres]. Fui incumbido, a pedido do Sebastião Salgado, de criar uma peça de música para acompanhá-la. Fiquei interessado por variadas razões. Primeiro, porque admiro e respeito o trabalho de Salgado há muito tempo. Depois, porque me parece muito importante falar sobre a Floresta Amazônica, que vive dias muito negros no atual contexto político brasileiro. Com o meu envolvimento desde ‘Oxygène’ com as Nações Unidas e a UNESCO, tento sempre integrar questões ambientais ao meu trabalho, portanto, pareceu-me lógica esta colaboração.”
O que precisa acontecer para que os líderes mundiais percebam que o desmatamento da Amazônia é altamente prejudicial para o planeta?
“Muitos líderes mundiais são, como nós, seres humanos sem consciência dos riscos, dos perigos e da emergência. E mesmo os melhores líderes, se é que eles existem, têm dificuldades em tomar decisões quando alcançam o poder. Tendo dito isto, é realmente uma situação estranha, porque o problema é abstrato para muitas pessoas. É como este vírus. A maior parte da população está anestesiada com a Covid-19. Se não ficamos doentes, sabemos que o vírus existe, mas vemos como algo abstrato. Se, subitamente, somos contaminados e vamos para o hospital, ou alguém que nos é próximo fica doente, somos confrontados com a morte e a tragédia. O mesmo acontece com questões ambientais. Muitas pessoas estão confortáveis nas suas cidades e até podem perceber que a situação é ruim, mas não sentem que o seu dia a dia é afetado. Só percebem da gravidade quando são confrontadas com algo concreto, porque desenvolvem uma doença provocada pela poluição, porque veem uma floresta sendo destruída na sua frente ou porque tem um grande problema com energia nuclear. É importante insistir sempre no valor da ecologia. Esta Exposição faz parte desse diálogo. Aquilo de que gosto no trabalho do Sebastião Salgado é que ele não tenta dar lições, nem sequer passar mensagens, simplesmente partilha convicções, o seu amor e a sua paixão pela natureza, de forma muito filosófica. Isso é muito forte. A Amazônia não pertence apenas às pessoas que vivem lá, pertence também a você, aos seus filhos, a mim e aos meus filhos, a todos nós. E é por isso que tem de ser estimada.”
Ao longo da seu carreira, tornou-se conhecido pelos concertos de grandes dimensões. O nervosismo que você sentiu quando, em 1997, tocou para um público de mais de três milhões de pessoas em Moscou, é diferente daquele que sente quando toca para 300 pessoas?
“É muito estranho. Pensei que seria diferente, porque também me apresentei em teatros pequenos. Mas uma performance, aconteça onde acontecer, sempre se traduz numa química estranha entre duas entidades: o público e o palco. E essa ligação ou funciona ou não funciona. É um enigma. Às vezes você chega no local só com o seu instrumento para tocar para 200 pessoas e pode ser mais intimidador do que tocar num cenário maior. É diferente. Mas penso que, no final das contas, o importante é sentir a ligação com o público, seja qual for a escala.”
Demorou bastante tempo para tocar em Portugal. A sua primeira apresentação foi em 2008. Valeu a pena a espera?
“Adoro Portugal. Quando estive em Lisboa pela primeira vez, antes de 2008, senti-me estranhamente em casa, como se estivesse na minha cidade. Lembrei dos meus avós. E eles não são portugueses, são de Lyon, onde eu nasci. A minha mãe tem antepassados latinos, portugueses ou espanhóis, porque o sobrenome dela é Pejot. Mas senti algo verdadeiramente familiar. Gostaria muito de, no futuro, se possível, visitar mais vezes Portugal e tocar mais aí. Seria um sonho fazer um concerto ao ar livre em Portugal. Falamos disso, ao longo dos anos, mas ainda não aconteceu. Espero que, após o confinamento, seja um bom momento para celebrar.”
Como lida com as redes sociais e a forma como invadem o nosso espaço pessoal? Pergunto isto, em parte, por ter colaborado com Edward Snowden na faixa “Exit”, de 2016.
“Conheci Edward em Moscou e nos tornamos bons amigos. Eu o respeito muito. Quando ouvi falar dele pela primeira vez, pensei na minha mãe. Ela era uma grande figura da Resistência Francesa e me educou com a ideia de que quando um governo toma decisões que afetam a comunidade, alguns de nós devem confrontá-lo. E foi exatamente isso que o Edward Snowden fez. Para mim, ele é um herói dos nossos tempos. Não há como questionar. É um escândalo que nenhum país europeu tenha coragem suficiente para o acolher e era compreensível naquele período inicial em que as pessoas tiveram de perceber o que se passava. Mas passados todos estes anos tornou-se claro que este jovem homem, ajudou o planeta a abrir os olhos para o lado negro da tecnologia digital. Não percebo como continua a ser visto como um traidor. Todos adoramos ter o mundo no bolso, nos nossos smartphones, é um enorme progresso, mas, ao mesmo tempo, pode ser perigoso, portanto temos de estar alerta. A tecnologia é neutra, tudo depende da forma como a utilizamos. É um desafio constante para o ser humano. Quando a fissão de átomos foi descoberta trouxe um grande progresso na biologia, medicina e ciência, mas também fizemos a bomba atômica, portanto é a mesma velha história.”
Há 40 anos, vendia milhões de exemplares de “Oxygène”, hoje o paradigma é diferente. Como você olha para a atual fase da indústria musical?
“Espero que este confinamento abra os nossos olhos para o valor da música. Durante este período só fizemos duas coisas: comprar comida e depois assistimos filmes, lemos livros e ouvimos música. Sem música, teria sido um desespero total, um deserto. Ficou provado que a música é um bem essencial. É comida para a nossa alma. Portanto, deveríamos parar de pensar nela como um bem gratuito. Por qual razão o seu jornal deve valer dez vezes menos só porque é lido num tablet e não em papel? O conteúdo é o mesmo, o trabalho é o mesmo. Espero que este momento ajude a indústria a aceitar que os artistas devem receber melhor pelo seu trabalho na Internet. Quando vejo empresas como o Spotify a pedir aos usuários, durante a pandemia, para fazerem doações para os artistas de que gostam ou a dizer ‘se querem ter maior exposição, diminuam a porcentagem dos royalties’, gostaria de lembrar estas pessoas de que não queremos voltar aos tempos em que, há dois séculos, os músicos imploravam que lhes dessem dinheiro nas ruas. Se não fizermos nada, um terço da comunidade musical vai mudar de emprego. Muitos artistas, neste momento, estão trabalhando com Uber ou para a Amazon. Será que queremos mesmo que os artistas de que gostamos estejam a um passo de deixar de fazer música? É urgente que retribuamos o respeito que a música merece.”
Fonte: Expresso.pt | Agradecimentos: Domingos Moreira (Portugal) e Ricardo Melo pelos scans
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