JEAN-MICHEL JARRE: “SOMOS ANIMAIS ANALÓGICOS VIVENDO EM UMA ERA DIGITAL”

© Tomas Kika/Jean-Michel Jarre

O pioneiro dos sintetizadores reflete sobre seu espetacular concerto de 2024, Bridge from the Future, e sua visão para o futuro das apresentações ao vivo

08/09/2025 | Por: Danny Turner

Seis décadas depois, Jean-Michel Jarre continua motivado a reescrever a história da música eletrônica. Desde 1972, seu nome é sinônimo de inovação: seu terceiro álbum, Oxygene, vendeu 18 milhões de cópias e abriu caminho para a revolução dos sintetizadores nos anos 1970.

Dos primeiros sintetizadores modulares ao surgimento da gravação digital – e agora a Inteligência Artificial –, a fascinação de Jarre pela tecnologia segue inabalável, unindo o vanguardista e o popular por meio de álbuns visionários e apresentações ao vivo.

Neste mês, o aparentemente incansável inovador lança Live in Bratislava, que registra seu espetacular concerto ao ar livre, Bridge from the Future, realizado na Eslováquia em maio de 2024. O show atraiu mais de 100 mil pessoas às margens do Danúbio e milhões acompanharam via transmissão global, sendo descrito como a produção ao vivo mais ambiciosa de Jarre até hoje.

O espetáculo transformou a Ponte UFO de Bratislava em um palco futurista emoldurado por duas torres de 30 metros, com lasers, fogos de artifício, um balé de 400 drones e narrativa visual de ponta. E, como se não bastasse, contou com a histórica colaboração do guitarrista do Queen, Sir Brian May, ao lado da Orquestra e do Coro Filarmônicos da Eslováquia.

Quais foram as circunstâncias que levaram você a realizar esse concerto único e espetacular em Bratislava em 2024?

“Foi ligado a uma colaboração que já mantenho há alguns anos com uma organização chamada Starmus, criada e financiada por Stephen Hawking. Hoje ela é financiada pelo astrofísico Dr. Garik Israelian e por Brian May, que todos conhecemos como músico, mas que também é astrofísico. Sempre pensamos que seria interessante criar um lançamento espetacular para esse encontro anual de cientistas, músicos e empreendedores do mundo todo, com o objetivo de refletir sobre nossa sociedade e transmitir alguns valores ligados à ciência, à arte e à cultura. Tecnologia e ciência sempre fizeram parte da minha vida como artista, então parecia lógico estar envolvido nesse tipo de projeto.”

Você já realizou concertos enormes no passado, mas de que forma diria que Bratislava foi o mais ambicioso?

“Quando comecei minha carreira, o cineasta italiano Federico Fellini me disse algo bastante pertinente. Ele disse: ‘Sempre que fazia um filme, pensava que era totalmente diferente do anterior, mas olhando para trás, percebia que sempre fiz o mesmo’. O que ele quis dizer é que, seja Tarantino ou Kubrick, os cineastas estão sempre nos dizendo a mesma coisa, e cada filme é uma declaração de seu estilo. Como artistas, somos obcecados em lapidar algo que queremos alcançar e eu sempre me interessei por apresentações de música eletrônica que envolvem design de palco e elementos visuais. Fui um dos primeiros a projetar imagens em prédios, e voltei a explorar essa expressão porque ainda é interessante descobrir como posso expandir os limites com a tecnologia de nossa época. Nos últimos anos, tenho trabalhado bastante com IA do ponto de vista visual e usei isso para conceber todo o design de palco deste projeto. Com IA, você tem ferramentas para realizar coisas que seriam impossíveis até 10 ou 15 anos atrás, e Bratislava foi um bom exemplo disso, com muitos técnicos talentosos envolvidos em IA, lasers e vídeo.”

O concerto se chama “Bridge from the Future”. Como isso se relaciona com o espetáculo em termos de narrativa visual e coreografia?

“Desde o início, a ideia foi tornar a performance relevante para o lançamento do festival Starmus – cujo primeiro ciclo foi baseado em Stephen Hawking e em nossa relação da Terra com o espaço –, mas a ideia desta segunda parte foi inverter isso. Não conhecemos o futuro, mas nossos sonhos ou conceitos esotéricos provavelmente são a realidade de amanhã, e por meio da arte, da música e da ciência gosto da ideia de tentar criar uma ponte do futuro para o presente usando elementos que, por definição, acreditamos que existirão.”

© Tomas Kika/Jean-Michel Jarre

Você é conhecido por fazer shows solo, mas desta vez trouxe outros músicos para o palco. Isso foi para reduzir sua dependência da tecnologia?

“Estou sempre alternando entre ter uma banda e trabalhar dentro de um conceito de música eletrônica com sequências pré-programadas, mas às vezes misturo os dois. Como a escala do espetáculo era bastante ambiciosa e estávamos no meio de Bratislava, que é quase uma megalópole, achei que seria interessante incluir músicos como Brian May e criar uma banda, não apenas com bateria, sintetizadores e guitarras, mas também com elementos clássicos como coral e trombone para dar um impacto épico.”

O que motivou sua escolha do sintetizador modular GRP A4 como principal teclado do show?

“No fim das contas, somos animais analógicos vivendo em uma era digital, então adoro usar uma mistura de equipamentos analógicos antigos e digitais. Claro, o violino é muito mais antigo, mas não o chamamos de ‘velho’, porque é um instrumento atemporal. Para mim, o Moog Modular e o GRP italiano são instrumentos brilhantes e também atemporais, e é muito interessante misturá-los com ferramentas de IA ou interfaces puramente digitais. É disso que se trata hoje – às vezes você dirige um carro elétrico, às vezes anda de bicicleta. Como músico, adoro lidar com esses oxímoros.”

Também vimos que você usou um EMS VCS 3 no palco. Foi porque queria reproduzir fielmente sons das suas gravações originais?

“Sim, mas também há um aspecto fetichista, porque usá-lo no palco quase se tornou um ritual. O VCS 3 foi meu primeiro sintetizador, então fiquei supersticioso e quero envolvê-lo em tudo que faço, mas também é uma oportunidade de usar efeitos sonoros malucos durante momentos de transição ou para inspirar minha paleta de cores.”

Quais outras tecnologias foram essenciais na sua performance ao vivo?

Tenho uma nova interface digital francesa que uso bastante chamada Embodme Erae Touch, que é como um tablet no formato de um iPad, mas um pouco maior e mais grosso. É um controlador tátil, mas funciona com dados de toque em X, Y e Z, e não apenas em X e Y, e você pode alterar a velocidade, o que dá muito mais possibilidades de tocar e se apresentar. Tenho quatro ou cinco Eraes controlando muitas coisas diferentes, como volume e efeitos sonoros, mas ele também pode disparar sequências, então é uma parte bastante importante do meu set-up de equipamentos.”

© Tomas Kika/Jean-Michel Jarre

E aquele dispositivo circular em que você batia de vez em quando?

“Aquele é o Roland HandSonic, que é um instrumento de percussão eletrônica. Você pode disparar até 16 sons diferentes por música, mudando de uma faixa para outra via controle MIDI. Na maior parte do tempo, mantenho os 16 sons que programei para o show, o que me permite realmente tocá-los – um pouco como um baterista.”

Se pegarmos uma faixa clássica sua como “Oxygene 2” – você a remodela para manter as coisas interessantes tanto para você quanto para o público?

“É uma pergunta muito interessante. No ano que vem, vou fazer uma turnê mundial e vamos tocar no Reino Unido, na França e nos EUA, mas recentemente fiz uma série de shows em que podíamos mudar uma faixa como Oxygene 2 a cada apresentação para adaptá-la ao local. Por exemplo, em Bratislava achei interessante criar uma introdução longa para Oxygene 2 tocando ao lado da jovem artista britânica Adiescar Chase, que é compositora e produtora. Criamos uma espécie de dueto em que toquei uma flauta eletrônica em diálogo com o violino elétrico dela. Então tento manter a estrutura da música enquanto altero alguns elementos ou instrumentos para manter meu entusiasmo.”

A participação de Brian May foi extraordinária. Vocês ensaiaram juntos ou ele é capaz de improvisar de imediato?

“Trabalhamos bastante juntos antes do show. Claro, ele é um músico extraordinário e talentoso, mas também um incrível cientista e ser humano, e tivemos muitas conversas sobre sua participação. Desde o início, Brian disse: ‘Ok, esse é o seu show e vou ser apenas um convidado tentando me integrar ao seu projeto’, o que foi um grande esforço, porque tocar com arranjos totalmente eletrônicos e se integrar em um projeto assim é um mundo diferente do Queen, onde ele sempre tem total controle do conceito no palco. Acho que o resultado foi maravilhoso e realmente nos conectamos, apesar de termos enfrentado muitos desafios técnicos. Por exemplo, na música eletrônica estamos acostumados a usar retornos in-ear para maior precisão, mas, como guitarrista de rock, Brian não consegue usá-los. Ele sempre toca com wedges, mas para mim ter três amplificadores enormes e retornos de chão espalhados pelo palco é um verdadeiro inferno [risos]. Então nós dois tivemos que tentar sobreviver a conceitos de monitoração totalmente diferentes, mas criamos algo bastante único que espero que o público tenha sentido no resultado final.”

© Tomas Kika/Jean-Michel Jarre

Há outros artistas com quem você gostaria de se apresentar ao vivo?

“É apenas uma questão de disponibilidade. Fiquei realmente impressionado com minha colaboração com Pete Townshend alguns anos atrás no projeto Electronica. Ele é um ótimo exemplo de alguém que pertence à história do rock, mas que também está muito atento às novas tecnologias. Na verdade, foi um dos primeiros músicos a introduzir a eletrônica no rock, então é outro pioneiro com quem eu ficaria muito feliz em unir forças algum dia.”

Quais outros desafios técnicos você enfrentou em um concerto dessa dimensão?

“Como estávamos tocando ao ar livre, tivemos que lidar com a chuva e o vento, microfonação ao vivo para os instrumentos acústicos e coral, amplificadores para as guitarras elétricas e saída direta dos teclados eletrônicos, o que criou muitos desafios técnicos. Além disso, estávamos filmando o show, então havia questões técnicas envolvendo timecode, frequências de rádio e transmissão.”

E vocês também usaram muitos fogos de artifício…

“Exato, e também tínhamos drones surgindo ao fundo como parte do design de palco – não como decoração, mas como parte de uma matriz totalmente sincronizada com o ritmo e a música. Também conheci uma empresa extraordinária chamada KVANT, especializada em lasers. Eles são de Bratislava, então foi ótimo trabalhar com técnicos locais que ficaram encarregados das projeções a laser no prédio.”

Você também incorporou vídeos de Edward Snowden para a faixa “Exit”, que fala sobre privacidade e sobre como as informações são armazenadas digitalmente. Com a ascensão da IA, isso é uma preocupação ainda maior para você hoje?

Fiz essa faixa em colaboração com Edward porque fiquei realmente impressionado com sua coragem e o considero um herói moderno. Ele me fez lembrar de minha mãe, que foi uma grande figura da Resistência Francesa e sempre me ensinou que, cada vez que surgisse um regime ou uma ideologia de governo que pudesse afetar a comunidade, era preciso se levantar contra isso. Também soube que Edward era fã de música eletrônica, então fui a Moscou para conversar, gravar e filmá-lo para essa faixa. Ele sugeriu o título ‘Exit’, por razões óbvias, e achei muito relevante tocar essa música em Bratislava, ao falar sobre a relação entre tecnologia e o impacto que ela tem sobre nós como cidadãos.”

Alguns anos atrás, você discutiu com a Sony CSL o desenvolvimento de software algorítmico movido por IA. Isso resultou em algo?

“Ainda estou em contato com a Sony CSL, mas devo dizer que ainda há muito trabalho a ser feito em relação à IA e à música, especialmente em termos de direitos autorais e de autores. É totalmente compreensível que a indústria veja a IA, ou o uso de algoritmos, como uma ameaça potencial, mas acho que seria um grande erro reduzir essa relação apenas a uma questão legal. Claro que precisamos estabelecer regras, porque o sistema está sendo usado para extrair nosso conteúdo – e sem isso, um algoritmo teria que extrair de um dicionário, então o valor dessas empresas depende inteiramente do nosso conteúdo.”

Você imagina um sistema que crie uma relação mais justa entre músicos e aqueles que buscam lucrar com conteúdo extraído?

“Acho que o sistema clássico de direitos autorais não pode ser aplicado à nova relação que teremos com a IA. Pela primeira vez, deveríamos aceitar que a comunidade artística e criativa tenha uma fatia do bolo digital. Somos parceiros comerciais e deveríamos parar de mendigar por direitos e pedir a essas empresas um sistema de royalties, porque isso não funciona com a filosofia do algoritmo. Os algoritmos atuais de IA nem sabem o que estão extraindo. Todos esses jovens desenvolvedores amam cinema e música, então não são contra nós, mas se quisermos fazer um acordo, temos que falar a mesma linguagem. Também deveríamos parar com essa abordagem pseudo libertária de dizer que as regras afetam e enfraquecem a liberdade, quando é exatamente o contrário. Precisamos de regras – assim como só podemos dirigir com segurança porque temos carteira de motorista. Dito isso, a IA é uma ferramenta fantástica – embora eu costume dizer que deveria significar imaginação aumentada e não Inteligência Artificial.”

Você enfrentou algum problema de direitos autorais relacionados à IA nos seus primeiros trabalhos com a Sony CSL?

“Quando comecei a trabalhar com a Sony CSL, me deparei com matemáticos e cientistas puros e fiquei um pouco decepcionado no início, porque eles ignoravam alguns elementos muito importantes da música: o ‘groove’ e a incerteza. Você não pode reduzir a composição musical a números – ela vai além disso. Não estou falando apenas da Sony CSL, mas isso ainda é um problema hoje. Para meu próximo projeto, estou me preparando para trabalhar com um iPhone a fim de tentar criar um diálogo com um algoritmo que me permita abordá-lo de maneira intuitiva e criativa. No momento, uso mais do ponto de vista visual, mas não é algo que a IA criou – eu criei tudo usando IA, e o resultado foi o que eu queria. Então estou usando a mesma abordagem com a IA, a mesma que teria com um sintetizador.”

© Mark Gidley/Jean-Michel Jarre

Em 100 anos, você acha que as pessoas verão um Jean-Michel Jarre em IA se apresentando ‘ao vivo’ no palco?

“Não estou pronto ainda para a criogenia, mas entendo o que você quer dizer. Como eu disse, somos animais analógicos feitos de carne e osso e a IA será uma ferramenta fantástica, mas ainda se trata do que pode ser feito no mundo ocidental com 12 notas. O que torna Miles Davis, Billie Eilish ou Mozart únicos é o fato de a música vir deles, e essa especificidade não pode ser substituída pela IA. Não devemos esquecer que a IA está colhendo o passado e detectando estilos, mas tenho certeza de que ela vai gerar o novo bebop, o novo rock and roll, o novo techno e novos gêneros e formas de arte – e isso é muito empolgante.”

Fonte: MusicRadar

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