Em reportagem a rede norte-americana CNN, o músico francês Jean Michel Jarre e o saxofonista Kirk Whalum relembram os 30 anos do fantástico concerto na cidade de Houston, no Texas, Estados Unidos. O único concerto de Jarre naquele país até a presente data… diga-se de passagem.
Leia a reportagem da CNN intitulada :
“O trágico triunfo do maior concerto do mundo”
Foi uma noite para jamais esquecer: 1,3 milhão de pessoas amontoadas em parques da cidade e calçadas, bloqueando estradas e esticando o pescoço para ter uma visão do maior concerto que o mundo já tinha visto, tudo em celebração à NASA.
Em 5 de abril de 1986, o compositor de música eletrônica Jean-Michel Jarre apresentou um tumultuoso espetáculo, iluminando o horizonte de Houston com lasers, grandes projeções e fogos-de-artifício para uma explosão de sons sintetizados no ar da noite. Mas faltava alguém.
O concerto teria seu clímax com algo totalmente original. Um jovem astronauta afro-americano chamado Ron McNair tocaria parte do concerto milhas acima da cidade, no interior do ônibus espacial Challenger.
== O astronauta e seu saxofone ==
O talentoso saxofonista trabalhou com Jarre para compor uma música especial, concebida para ligar Terra e espaço em um momento de celebração, mas a música e o concerto tiveram que assumir um significado totalmente diferente.
Ron McNair era tão apaixonado por música quando por viagens espaciais.
Kirk Whalum, músico de jazz e ganhador do Grammy, lembra seu primeiro encontro: “Eu estava tocando em um clube em Houston chamado Cody e Ron entrou, com aqueles grandes óculos grossos, você sabe, totalmente nerd, e disse, ‘Eu toco saxofone’. Eu disse ‘Legal, me diga mais sobre isso’ e ele disse ‘Sim, sou um astronauta’, e eu disse ‘Uau, OK!'”
Whalum ri quando descreve o segundo encontro. “Então, na vez seguinte em que ele entrou, sendo um bom anfitrião, era para eu lembrar de algo sobre ele e eu disse “OK, sei que eu deveria lembrar de algo sobre você, eu sei que você toca saxofone, você é um comissário de bordo?‘”
Ele se lembra de seu espanto quando percebeu seu erro. “Eu só queria saltar para fora da janela!”
== Um telefonema da NASA ==
Jarre, o pioneiro da música eletrônica com vários discos de platina, citado pelo autor de ficção científica Arthur C. Clark nas notas de “2010: Uma Odisseia no Espaço 2” (“2010: Segunda Odisseia”, em Portugal), foi convidado pela NASA para realizar um concerto especial em Houston.
O francês – atualmente se preparando para uma turnê mundial com o seu novo projeto “Electronica” – se lembra vividamente sua primeira visita à sede da organização. “Minha primeira reunião na NASA foi absolutamente surreal. Todos aqueles astronautas sentados em seus escritórios, trabalhando em suas coisas. Tivemos nossa primeira reunião com um monte de astronautas ao redor da mesa.”
Durante as reuniões iniciais, contaram a Jarre sobre o talento de McNair. “Nós tivemos essa ideia, de que este astronauta poderia tocar ao vivo, na ausência de gravidade do espaço, durante o concerto, porque um novo ônibus espacial ia ser lançado semanas antes.”
Jarre e McNair bateram o martelo na mesma hora. “Reunimos com Ron, que fazia parte das discussões preliminares, e nos demos muito bem juntos, assim como com sua família. Eram pessoas absolutamente encantadoras”, lembra ele.
“Ron foi antes de tudo um ser humano fantástico e, como a maioria dos astronautas, era um humanista, num sentido muito moderno da palavra. Também – como todos os astronautas – ele era um sonhador.”
Trabalhar em conjunto no entanto, teve alguns problemas. Nos meses que antecederam ao evento, Jarre estava ocupado compondo “Rendez-Vous“, o novo álbum que seria a base do concerto de Houston. Trabalhando em Londres e Paris durante a semana, ele viajava para o Texas nos finais de semana.
== Tocando no espaço ==
McNair, por sua vez, estava equilibrando as extremas exigências de sua profissão de astronauta com seu papel no concerto. “Foi muita pressão para ambos os lados”, Jarre contou à CNN.
“Para ele, ter que aprender uma melodia em especial e tocá-la na ausência de gravidade do espaço, com todos os problemas técnicos, como a saliva, como eliminar a saliva no espaço, todos estes tipos de coisas, e também do meu lado, escrevendo uma melodia para um astronauta foi algo, pela sua essência, bastante desafiador.”
Jarre também chegou com uma ideia para a faixa que, sem o conhecimento dele, teria de assumir um novo significado no próprio concerto.
“Eu descobri, a partir de conversas com as pessoas, que, no silêncio total do espaço, o que você mais ouve é a batida do seu coração. Então eu tive a ideia de usar os batimentos cardíacos de Ron para criar o loop e a batida da faixa. Olhando em retrospecto, teve um grande significado considerando o que aconteceu mais tarde.”
Nas semanas que antecederam o lançamento, McNair se juntou a seus colegas astronautas em quarentena, tornando o contato com Jarre mais difícil. Em um mundo antes dos telefones celulares, eles conceberam um plano habilidoso: “Ron me disse: ‘Podemos nos falar todos os dias exatamente às 2:00, porque eu passo por um corredor onde há um telefone público, eu lhe dou o número e você pode ligar-me neste momento’.”
== O lançamento e a tragédia ==
Então chegou o dia do lançamento. McNair falou com Jarre uma última vez. “Nós conversamos de manhã e ele disse ‘OK, este é o dia D'”, Jarre lembra com tristeza. “Nós vamos decolar esta tarde, você poderá nos assistir na TV e eu te vejo em algumas semanas.”
Em Houston, Kirk Whalum tinha feito uma apresentação na noite anterior. “Naquela manhã, minha esposa e meu pequeno bebê – que agora está com 30 anos – estavam com a TV ligada”, ele disse à CNN. “Eu ainda estava dormindo, pois tinha tocado até tarde, minha esposa me acordou e disse ‘venha ver’.”
No lançamento, a Challenger subiu para o céu acima do famoso Centro Espacial Kennedy, em Cabo Canaveral.
Setenta e três segundos depois, um anel de vedação em um de seus foguetes de combustível falhou. A falha foi catastrófica. O gigantesco tanque de combustível do ônibus espacial explodiu. Enquanto o mundo assistia com horror, os sete tripulantes do Challenger, incluindo Ron McNair, morriam.
Jarre estava em seu estúdio de gravação em Paris. “Nós formávamos um grupo de pessoas, famílias e também músicos envolvidos. Paramos o ensaio porque queríamos compartilhar este momento fantástico todos juntos, com Ron e todos os demais”, explicou.
== Lágrimas e aflição ==
Seu entusiasmo rapidamente se transformou em aflição. “Todos estávamos chorando e eu só queria parar e abandonar o projeto, porque eu achava um absurdo, este concerto não tinha mais sentido. Eu estava obviamente afetado e muito triste pelo meu amigo, porque nós tínhamos nos tornado bons amigos, e eu estava muito chocado com a perda de um amigo.”
A voz de Whalum se interrompe e falha com a emoção ao descrever o momento. “É engraçado, isto ainda me afeta. Quer dizer, isso foi realmente um acontecimento.”
A ideia do concerto, concebido tão proximamente com a Challenger e a NASA, agora parecia um absurdo para Jarre: “De repente tudo isso me matou e eu não tinha mais energia. Eu disse ‘esqueça!’.”
Mas, quase imediatamente, chegaram ligações insistindo que ele continuasse.
== Seguindo adiante ==
“Vários astronautas me ligaram, outras pessoas da NASA, gente como (o astronauta) Bruce McCandless, que era amigo de Ron, e disse ‘você tem que seguir adiante’, não há como não fazermos este concerto, porque tem que ser uma homenagem aos astronautas, você tem que homenagear estes heróis modernos.”
Os músicos e organizadores se reagruparam. A primeira questão era sobre a música que caberia a Ron McNair. Quem poderia lhe substituir? Seu amigo Whalum era a escolha óbvia.
“A esposa de Ron, Cheryl, me ligou semanas mais tarde e disse: ‘Você tocará esta música, que foi escrita para Ron, no lugar dele no evento?’ Eu tremi nas bases, quero dizer, eu tinha apenas 24 anos de idade, eu me senti tão honrado.”
No dia do concerto, o centro de Houston era um frenesi de atividade. Algumas horas antes do show começar, as auto-estradas da cidade estavam fechadas ou totalmente engarrafadas, enquanto mais de um milhão de pessoas se encaminhavam para assistir.
== Engarrafamento em Houston ==
Whalum estava indo para o show. “Muitas rodovias estavam fechadas As pessoas se sentavam na auto-estrada. Chegar ao palco foi uma loucura. Nós dirigimos pelo acostamento na pista, raspando a lateral da pista tentando chegar lá, quer dizer, eu mal conseguia chegar”.
Jarre se lembra de ver as cenas na TV: “Eu olhei para as imagens de carros parados nas estradas e de repente percebi que estavam todos vazios!” Jarre ri. “As pessoas estavam sentadas em cima deles, ouvindo seus rádios ou boombox!”
“Ao pôr-do-sol, fomos para a janela e olhamos para baixo, vimos uma espécie de tinta escura, como se um pote de tinta tivesse sido derramado sobre o verde do campo abaixo”, lembra Jarre. “Pensamos que fosse um reflexo do pôr-do-sol, mas de repente percebemos que era a multidão, e a multidão na verdade estava em todos os lugares!”
“Foi um choque tão grande, quer dizer, foi além de dar medo de entrar no palco. Foi como ser parte de uma comunidade compartilhando este momento. Isto me deu muita energia positiva para entrar no palco, quer dizer, se não fosse assim, aquela visão assustaria qualquer um!“
No palco, uma torre havia sido construída para Whalum ficar e tocar a parte de McNair. “Ir ao palco assumiu um novo significado naquele dia”, lembra ele. “Porque não foi só a multidão, a massa de gente e toda a segurança apenas para chegar ao local, eles também tinham que içar o meu instrumento, e eu estava subindo esta escada louca para chegar ao topo do andaime.”
== Ron’s Piece ==
Quando chegou o momento de tocar a faixa – “Last Rendez Vous” ou “Ron’s piece”, como ficou conhecida – o desempenho de Whalum foi impecável.
“A forma como Kirk tocou a melodia foi absolutamente incrível”, diz Jarre. “Ele acrescentou algo a mais. Ele estava tocando a música mas também estava tocando para Ron, e sua versão é a minha favorita.”
Kirk Whalum se lembra vividamente do som de seu saxofone perfurando as ondas de música eletrônica.
“Ter aquela solitária voz analógica, com uma flauta, se elevando – especialmente com a extensão do soprano – cortando todos aqueles sintetizadores analógicos, que criavam estas camadas atmosféricas, era muito algo ‘do outro mundo’.
Contra todas as probabilidades, o concerto foi um sucesso absoluto. Na época foi o maior público para um evento como esse. Houston estava vivo com um espetáculo do tipo que o mundo nunca tinha visto.
== Um momento de unificação ==
O concerto também foi um momento notável para uma cidade profundamente ferida. “Eu acho que este projeto criou, eu espero, e sinto, um ligeiro efeito calmante”, diz Jarre. “Foi como se o tempo parasse por um momento e de repente todo mundo ficasse ao redor dos astronautas, em torno NASA, homenageando essas pessoas.”
Whalum recorda um sentimento especial. “Há um aspecto que eu valorizo”, ele diz.
“Você sabe, aqui é o Texas, e o pecado original da América está sempre presente conosco quando acordamos todas as manhãs, você sabe, você acorda como uma pessoa negra. Todas essas coisas desapareceram, sabe? O muçulmano, o cristão, o judeu, quero dizer, todo mundo se sentiu como orgulhosos texanos e americanos naquele momento, e música fez isso.”
“As pessoas ainda não entendem quão vitalmente importante a música é em momentos como este, para unir as pessoas e pensar justamente em linhas de ser um, de ser frágil. Foi um momento de unificação”.
Fonte: http://edition.cnn.com/2016/04/05/us/challenger-astronaut-and-saxophone/
Revisão: Raphael Romero Barbosa.
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