Inventando o futuro com Jeff Mills e Jean Michel Jarre

Os dois pioneiros da música eletrônica se encontram para uma discussão sobre a tecnologia, o futuro e as barreiras para o progresso

Texto de Selim Bulut – DAZED MAGAZINE

Jean-Michel Jarre é o pioneiro dos sintetizadores francês que vendeu 80 milhões de discos, compôs algumas das faixas mais emblemáticos da música eletrônica e fez concertos ao ar livre para milhões em locais como a Torre Eiffel e as Pirâmides de Gizé. Jeff Mills é o artista inovador de Detroit que definiu a forma inicial de techno com Underground Resistance e com The Wizard, foi residente em Tresor e no Louvre e quebrou as barreiras entre a pista de dança e a sala de concertos com suas colaborações orquestrais.

Os dois artistas deixaram uma marca indelével na música eletrônica, cada um da sua própria maneira, e agora trabalharam juntos em uma faixa para o novo álbum do Jarre “Electronica 2”, a segunda parte de um projeto que vê o artista francês colaborar com uma enorme quantidade de músicos que tiveram um impacto duradouro sobre a música eletrônica, de Gary Numan aos Pet Shop Boys e Laurie Anderson.

“Este projeto Electronica, é sobre como trabalhar com pessoas que são uma forte fonte de inspiração para mim”, diz Jarre por telefone de Paris. “Jeff estava no começo da lista. A faixa é chamada de “The Architect” – num certo sentido, é uma homenagem a Jeff. Há uma certa ligação entre cidades e música eletrônica, e, obviamente, no caso do techno, Jeff está ligado a Detroit. Mas, além disso, eu realmente considero Jeff um arquiteto da música eletrônica. Sua música é tão abstrata quanto uma peça de arquitetura moderna, mas ainda assim muito orgânica. Eu acho que a música é um equilíbrio absoluto entre os nossos DNAs e entre nossos mundos.”

Se há uma ligação compartilhada entre os dois artistas, é seu fascínio com o futuro. Embora surgidos em diferentes décadas, ambos se encontraram atraídos para as mais novas tecnologias e usam-na para explorar novas formas musicais. E sem surpresa, ambos são grandes fãs de ficção científica, utilizando maciçamente as imagens do espaço e de um mundo tecno-futurista para imaginar a próxima fase da humanidade. “Eu cresci ouvindo a música de Jean-Michel”, diz Mills, “Nós costumávamos chamá-la de ‘música progressiva’ em Detroit nos anos 70 e início dos anos 80, porque não havia uma categoria para esse tipo de música. Foi a música que realmente representou uma realidade futura”.

Antes do lançamento do Electronica 2, os dois artistas falaram juntos para discutir o futuro, como a música eletrônica pode contribuir para o futuro, e as maiores barreiras para alcançar este futuro.

Jean-Michel Jarre: (Quando nos encontramos pela primeira vez) nós conversamos no meu estúdio há muito tempo sobre como estruturar uma peça de música. Você tinha uma ideia bastante precisa de onde você queria ir, o que é incomum para um monte de músicos. Nós (também) descobrimos que tínhamos o mesmo tipo de interesses – um dos filmes fundadores para nós dois foi 2001: Uma Odisseia no Espaço.

Jeff Mills: (Encontrar você) abriu meus olhos para muitas coisas. Até então, eu não tinha um entendimento direto sobre o que a música eletrônica na verdade contribui para o mundo criativo, mas depois disso – nós conversamos por três horas – um elo comum foi a música ser considerada por razões práticas. Mesmo se as razões estão distantes, mesmo se forem sonhos, fantasias ou escapismo das pessoas, sempre há um propósito prático.

Jean-Michel Jarre: Eu senti que quando mencionamos 2001: Uma Odisseia no Espaço, você estava ligado a esta fome de futuro – esta visão bastante românica do futuro. A razão pela qual a sua geração e minha têm sido tão influenciadas por filmes como 2001 foi porque era um espetáculo total, era mais do que apenas um filme. Eu acho que é o que estamos tentando realizar na nossa música, nos nossos sons, onde as pessoas podem criar seus próprios filmes na música.

Jeff Mills: 2001 é como uma chave multi-dimensional. Eu penso nisso assim, porque para mim, não é tanto o que o filme tratava, mas como a história se desenrolava e como você se sente depois de assistir. Eu sempre pensei que fazia quem assistiu ficar, pelo menos, um passo mais próximo do que o futuro será. Eu também ouvi isso em sua música. Quando eu era mais novo, gostava de procurar artistas e músicos que faziam música de uma forma que nos levaria para além da virada do século, na medida do possível. A música é uma forma de trazer coisas para a atenção das pessoas de maneiras que ressoam e estimulam ideias que as pessoas já têm em suas mentes sobre o que o futuro poderia ser.

Jean-Michel Jarre: Qual é a sua relação com o futuro hoje? Lembro-me, nos dias em que tínhamos esperança no futuro, (nós pensamos que) depois do ano 2000, o sistema social e educacional seria muito melhor. Carros voariam; teríamos todas essas ferramentas fantásticas. E parece que depois de 2000 perdemos esse tipo de inocência em relação ao futuro. Agora é um período muito mais sombrio, mais baseado em ‘Vamos matar o planeta?’ e outras questões ambientais. Os super-heróis para crianças são Marvel, (os mesmos super-heróis) da década de 1950. É como se precisássemos reinventar uma visão para o futuro. Sinto que, nos últimos três, quatro ou cinco anos, nós estamos começando a voltar para isso – filmes como Interestelar, Gravidade, (e) até Perdido em Marte voltam para a visão sci-fi do amanhã.

Jeff Mills: Eu estou mais do que convencido de que chegará o tempo virá, talvez até mesmo em nossa vida, que será o resultado das coisas criadas no século XX. Um monte de ideias que sonhamos, todas as formas de comunicação, serão realidade em algum momento deste século. Por exemplo, a internet: acho que não chegamos no ponto em que a estamos usando em sua forma melhor e mais eficaz. Nós vamos entender de verdade onde isso é mais importante em algum momento de crise – uma enorme, em grande escala – (e) acho que nós não tivemos uma ainda neste século. Então, quando estou compondo música, de uma certa maneira estou imaginando este tempo e o que vem depois, e como nós, seres humanos, teremos que adaptar nossas vidas. Parte da nossa vida como seres humanos será tentar compreender algo que nós nunca encontramos ou experimentamos antes. Eu não imagino que isto demore dezenas de milhares de anos no futuro, acho que será bem antes.

Jean-Michel Jarre: Eu tenho uma visão um pouco diferente do futuro. Dois séculos atrás, nós não podíamos conceber a eletricidade, e, em seguida, ela mudou o nosso mundo – mas temos sido capazes de lidar com isso. E, pela primeira vez no século 21, sabemos que a inteligência artificial será mais rápida e superior à inteligência humana e, quando isso acontecer, eles dizem que um (ou) dois anos mais tarde uma máquina será mais poderosa do que todos os cérebros de todos os seres humanos do planeta. Não é como ser confrontado pela eletricidade antes da eletricidade. O primeiro computador ganhou o jogo de Go, agora o computador está vencendo o melhor (jogador de Go) o tempo todo. Então, qual é o sentido de jogar de novo? E se, de repente, a máquina seja capaz de fazer música ou filmes e não pudermos competir com isso? É algo que não me preocupa, mas está mudando muito minha visão do futuro.

Jeff Mills: Você está tentando dizer que em algum momento podemos perder nosso senso de propósito?

Jean-Michel Jarre: Em certo sentido, sim. Pensei muito sobre a fotografia que você me mostrou, o protótipo de sua bateria eletrônica no Japão parecendo um OVNI. Estamos todos fascinado por pessoas provenientes de um universo diferente e um mundo diferente, mas eu não estou preparado para algo vindo deste planeta: que de repente (poderíamos) ter máquinas assumindo o controle.

Jeff Mills: Talvez os seres humanos tenham muita liberdade – não sabemos o que fazer com ela às vezes. Precisamos de algum tipo de direção, ou uma diretiva, a fim de dar sentido à razão pela qual estamos levantando todas as manhãs, ou porque nós estamos indo para dormir à noite. Ser totalmente livre é uma questão de saber se realmente queremos isso ou não. Se a tecnologia tem uma maneira de fazer isso, então por que colocar tanta ênfase em ser escravizado por ela? Eu estive pensando sobre o que os seres humanos estão realmente dando de contribuição para a natureza. Eu não tenho tanta certeza. Você sabe, a natureza pode viver sem nós.

Jean-Michel Jarre: Estou convencido de que a terra é muito mais forte do que nós.

Jeff Mills: O que realmente me intriga é: por que estamos aqui? Em algum momento, vamos tentar descobrir isso e haverá algum colapso em grande escala, e alguém terá de redefinir e dar sentido ao fato de estarmos aqui e o que precisamos fazer para evoluir ou nos manter. E alguém tem que chegar a algum tipo de razão. Esse checklist parece estar desmarcado, sabe?

Jean-Michel Jarre: Eu estava aqui pensando se todos estes aspectos do futuro e as perguntas que você tem estão a alimentar a sua inspiração para a música ou não no momento? Eu sei que você está trabalhando em um grande projeto sobre planetas [The Planets], misturando peças clássicas com música. Tudo o que estamos falando, é (importante para o projeto) ou não necessariamente?

Jeff Mills: The Planet, em particular, foi um projeto que eu achava muito importante, pois eu realmente acredito que os seres humanos vão para cada um desses planetas, (seja) fisicamente ou nas cercanias (onde podemos) ver cada um dos estes planetas a olho nu. Tenho certeza disso. Eu realmente acredito que a melhor época da nossa espécie ainda está por vir, apesar de todos os dias sombrios. Ajustes sempre criam loucura nas sociedades – “abaixo o antigo e viva o novo” tem esse jeito de fazer as pessoas ficarem insanas. Há um certo período de tempo que o mundo precisa para se sentir mais seguro – levou 50 anos para a era industrial terminar! Temos muito mais décadas a percorrer antes de realmente nos sentirmos confortáveis com computadores e coisas assim. Eu acho que nós nem começamos ainda. Estamos como em uma sala de espera, à espera de sermos diagnosticados.

Jean-Michel Jarre: Eu concordo totalmente com você. Penso que este tipo de paranoia apocalíptica também se baseia no fato de que os meios de comunicação estão vendendo-nos o apocalipse porque isso dá dinheiro. A paz é neutra e não muito sexy. É por isso que eu sou contra as pessoas dizendo “ontem foi melhor e amanhã será pior”. Nós não devemos esquecer que dois séculos atrás, as pessoas perdiam seus dentes aos 18 anos de idade, não tinham antibióticos e 90% das pessoas no planeta estavam morrendo de fome. Se você considerar isso, estamos um pouco melhor do que há dois séculos, mesmo estando com um monte de problemas no momento. Como Jeff disse, ainda somos bebês na era digital e da internet. Levou um bom tempo para terminar a revolução industrial, por isso precisamos de mais tempo para nos afirmarmos no mundo digital.

Mas uma das grandes questões no momento para mim – esta é a razão por que fiz uma colaboração com alguém como Edward Snowden – é que um pequeno grupo de pessoas pode controlar o mundo. Eles podem nos inspecionar, podem nos espionar. É sempre um problema quando os governadores estão monitorando os governados. Isso é algo com que cresci – minha mãe foi uma grande figura na resistência francesa. Ela sempre me disse que quando ela entrou na resistência em 1941, as pessoas eram consideradas causadores de problemas, quase como traidores para alguns deles, porque eram contra o poder estabelecido. Agora, devido à tecnologia digital, os governos têm mais e mais poder sobre os governados. Isso é algo que me preocupa. Como Jeff disse, a longo prazo vamos encontrar maneiras, mas precisamos de denunciantes e precisamos deste tipo de pessoas em cada momento da história a se levantar contra os poderes estabelecidos. O uso e abuso da tecnologia sempre foi um problema filosófico para a humanidade – quando descobrimos o átomo, demos um grande passo na medicina, mas também fizemos a bomba atômica. (É o) mesma coisa com a internet. A tecnologia é neutra, mas tudo depende da forma como a usamos. Nós sempre temos que estar alertas.

Jeff Mills: Enquanto houver pessoas – e as pessoas devem viver juntas e coexistirem – você vai ter esses problemas. Mas, talvez, isto sinalize um tipo diferente da realidade do que podemos escolher para viver, ao contrário da real. A realidade simulada é uma resposta para todos os nossos sonhos: não confiamos uns nos outros, não queremos estar próximos um do outro, então por que deveríamos? (Talvez) eu não queira ser Jeff Mills na terça-feira – eu quero ser Miles Davis na terça-feira. E então, deixa ver, Michael Jackson na quinta-feira. A tecnologia pode tornar possível nós realmente nos sentirmos como se fôssemos aquelas pessoas e vivermos a vida que viveram. Uma evasão.

Jean-Michel Jarre: Essa é uma semana bem legal!

O novo álbum de Jean-Michel Jarre, Electronica 2, já está à venda

Entrevista original:
http://www.dazeddigital.com/music/article/30998/1/inventing-the-future-with-jeff-mills-and-jean-michel-jarre

Agradecimentos: Raphael Romero Barbosa

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