Prestes a completar 80 anos, atriz tem o que chamamos, em inglês e em francês, de allure

Ela entrou, pontualmente, no café do hotel na Rive Gauche, cabelos bem curtos e grisalhos penteados para trás, zero maquiagem, apenas um leve batom rosa, nenhum anel, brinco ou colar, o paletó riscadinho, a calça preta reta, o mocassim de verniz. Andrógina? Já a havia encontrado antes na feijoada de uma amiga comum, embaixadora em Paris. Assim, desse jeito. Clássica, inglesa, fria, enigmática? Ou apenas formal, ao cumprimentar com a mão e esboçar meio sorriso?
Charlotte Rampling tem, prestes a completar 80 anos, o que chamamos, em inglês e em francês, de allure. É algo próprio das divas, difícil de descrever. Uma diva não precisa ser a mais esfuziante, a mais sedutora. O fascínio surge sem esforço, pelo olhar penetrante e azul, a postura, o mistério. É uma beleza absoluta, que impõe respeito mesmo nua, nas fotos de Helmut Newton para a Playboy em 1973. Divas intimidam, num primeiro momento. Mas podem revelar segredos e fragilidades se forem desarmadas. Conversamos uma hora, e dividimos uma garrafa de Perrier. Água mineral pétillante francesa.
Seu apelido é “The legend” (A lenda), mas prefiro o que Dirk Bogarde criou para ela: “The look”. O filme que Dirk e Charlotte fizeram a lançou ao estrelato, “O porteiro da noite” (1974). Não se pode falar de Charlotte sem assistir a esse filme, tão ousado e transgressor que faz “O último tango em Paris” parecer brincadeira. Na relação sadomasoquista com seu ex-torturador nazista, Charlotte interpreta a judia Lucia, em Viena, 13 anos após o Holocausto. Ela nunca foi tão felina, tão irresistível. Tinha apenas 27 anos. Hoje, morando sozinha em Paris após vários casamentos e filhos, ela constata que, ao se aproximar dos 80, recebe demasiados roteiros “com o personagem morrendo, ou desmoronando depois de algumas cenas”. Escolhe representar “mulheres interessantes, com algo a dizer”. Mesmo à beira da morte.
TRAGÉDIA NA FAMÍLIA

Foto: Monica Almeida / The New York Times
Ela está no filme de Costa-Gavras “Uma bela vida” (“Le dernier souffle” é o título original), nos cinemas. É uma das personagens com doença terminal que deseja apressar a morte, contrariando a família e os médicos. Aristocrata, recusa-se a ser iludida e a ser entupida de remédios. Pede ao amigo clínico um favor. Ao perder a consciência, que ele a deixe partir, não a traga de volta ao mundo dos vivos. Sua participação é uma pequena ponta no filme do cineasta com quem ela nunca havia trabalhado.
“Prefiro um papel modesto num filme consistente do que o papel principal em um filme de entretenimento” — diz Charlotte.
Seus papéis evoluíram do erotismo para a sensualidade e, finalmente, para a profundidade.
“Fui a guia dessa transição. Escolho os papéis nos quais me reconheço, nos quais reconheço as diferentes idades e o estado em que estou. É tudo uma questão de psicologia, é tudo sobre o que você tem a oferecer ao personagem. Você emana na tela aquilo que viveu. É atuação, claro, mas não é falso, porque é você. É criação.”
Levar o cinema a sério foi uma escolha, vinda de uma tragédia. Charlotte tinha 20 anos quando sua irmã se matou com um tiro após dar à luz prematuramente. Esse suicídio virou um segredo de família entre ela, seu pai — e o mundo:
“Dissemos para minha mãe que havia sido uma hemorragia cerebral, porque a verdade poderia matá-la.”
Foi a versão oficial e pública durante 35 anos, até a mãe morrer:
“A morte da minha irmã foi um trauma, um abalo formal, uma sidération, como se diz em francês. Então, obviamente, você muda depois de um trauma desses. Isso me fez buscar sentido nos filmes, não apenas entretenimento adorável. Fui mais fundo na psicologia, não só nos filmes, mas na minha jornada interior, conectada aos papéis.”
Quase bipolar. É como se descreve:
“Tenho altos e baixos muito intensos. O depressivo e o eufórico. É difícil planejar. Mas, se você é assim, sente com mais intensidade a alegria. A alegria é fantástica.”
Nunca fez psicanálise, só terapia psiquiátrica:
“Tentei fazer um pouco de análise na França, e era em francês, não na minha língua materna. Não funcionou. Não tenho paciência. Preciso de algo mais imediato. Na psiquiatria, há interação, você conversa com médicos sábios e maravilhosos.”
Pergunto se essa depressão já afetou sua profissão:
“Sim, sim, mas isso é a vida” (risos).
– O mundo não está nos ajudando…
“Exato, Ruth! O mundo é maníaco-depressivo, totalmente bipolar.”
TRAVESSIA DO DESERTO
No filme “Sob a areia” (2000), de François Ozon, Charlotte enfrentava sua maior depressão em anos. Entre outros motivos, a divulgação, nos tabloides, dos casos extraconjugais do músico Jean-Michel Jarre, após 20 anos de casamento e um filho. Charlotte por um tempo não quis aparecer na mídia, dar entrevistas:
“Foi minha travessia do deserto.”
Só depois ela percebeu que o filme “Sob a areia”, que a resgatou de volta ao cinema, era sobre desaparecimento: numa praia, o marido some e ela se recusa a admitir que ele se afogou.
“Minha irmã desapareceu. Nunca mais a vimos. Uma ligação. Disseram que estava morta e enterrada, em Buenos Aires. Não fui ao cemitério.”
Charlotte está soberba em filmes mais recentes: “45 Anos” (2015), “Hannah” (2017) e “Swimming-pool” (2003). São filmes imperdíveis, de diferentes diretores, que deixam mais perguntas do que respostas. Na vida real, a atriz não deixa pergunta sem resposta.
– Por que escolheu o cinema, com um pai coronel do Exército e atleta, e com uma mãe pintora amadora?
“Porque fui escolhida. Parecia divertido. Tinha 17 anos. Deixei a escola cedo e queria ser secretária. Meu pai disse que eu deveria ganhar meu sustento. Fui notada pelo executivo do andar de cima, numa agência de publicidade. Perguntaram se queria posar para fotos da Cadbury, os chocolates. Foi o começo de tudo. ‘Ah, você é tão fotogênica…'”
– Você foi descoberta por ser bonita.
“Sim, tão simples quanto isso.”
– Quando vê seus filmes antigos, sente-se uma pessoa completamente diferente daquela jovem atriz?
“Não, porque não estou olhando para mim mesma. Não me conecto com a aparência que tinha. Não tenho uma relação consciente com meu físico, desde muito jovem. Li livros sobre Hollywood e vi como poderia ser prejudicial ficar obcecada com a aparência. Você começa a ficar na frente do espelho, querendo controlar tudo, viciada na imagem. Não. Isso me salvou.”
– Nunca fez nada no rosto?
“Nenhum lifting. Apenas algumas injeções nas rugas, uma vez fiz um botox na testa, mas não gostei.”
– No Brasil…
“Ah, no Brasil fiz um filme em que interpretava uma cirurgiã plástica. Pitanguy me levou ao hospital para mostrar o que acontecia numa cirurgia, me contou tudo o que faria, foi quase uma história de terror. A descrição foi muito perturbadora. Na América, vemos todo mundo com 25 anos e, se você parece ter 60, é a mulher esquisita.”
– Viu “A Substância”, com Demi Moore?
“Não quis ver. Parece violento e estranho. E me pergunto qual é o propósito. Não quero me incomodar com um filme. Prefiro um pouco de romance e poesia.”
Costa-Gavras se surpreendeu quando Charlotte aceitou aparecer apenas dois minutos e vinte segundos em seu longa. Mas a personagem, Simonie, é decisiva. Muda a trajetória do amigo Auguste, clínico geral. “Nós sabemos o que eu tenho. Não é bom. Os médicos ficam me enrolando. Me alimentam mesmo sem fome. Me drogam até desmoronar. Estou desesperada. Quero que você se ocupe de mim e não me deixe voltar quando eu perder a consciência. Eu só confio em você”. Foi um choque profissional para o médico. Ele abriu uma clínica de cuidados paliativos para tornar a morte mais “confortável”, mais doce, mais gentil. Todos os personagens ali são reais. O filme se baseia no livro do filósofo Régis Debray com o médico Claude Grange.
Charlotte amou o roteiro:
“Gavras tem 92 anos, esse é um filme generoso, com uma mensagem importante para todos nós que envelhecemos e desejamos uma morte digna. E para tantos países que insistem em controlar o fim de nossas vidas. Tratam a morte como tabu. Colocam máquinas maravilhosas para sustentar uma vida, mesmo sem cura, mesmo em ruínas. A França é assim. Esse filme ajudará a conscientizar famílias de pacientes terminais. É preciso escutar os doentes. Os médicos precisam ser reeducados e saber que a tecnologia não substitui o toque humano.”

NA PASSARELA
Charlotte desfilou na Semana da Moda Masculina de Paris, em fevereiro do ano passado, aos 78 anos. Como sempre, a elegância. Debutou como pintora, expondo no Museu de Arte Moderna de Paris. Telas escuras, sombrias, “vindas do inconsciente”, encorajadas pelo “imenso Pierre Soulages” (1919-2022).
Agora em agosto, filma em Budapeste a continuação da saga de ficção científica “Duna”, no papel de reverenda madre. Os atores que contracenam com ela e o diretor, o canadense Denis Villeneuve, confessam ter ficado nervosos, alguns sentiram palpitações cardíacas quando ela ia entrar no set no primeiro “Duna”. Minha impressão é que Charlotte se diverte com a imagem que fazem dela. Ícone? Olhar gélido?
“Vocês é que dizem isso. A câmera adora esse olhar remoto com certos personagens. Mas atriz distante e fria… E ‘O porteiro da noite'”? — desafia. — Eles não sabem nada.
Ela se despede de mim com um beijo, para ir nadar no mar no Sul da França. Saúda os garçons, bonne journée, com sotaque levemente inglês, e desliza do café do hotel para a rua no extremo calor deste verão parisiense.
Fonte: O Globo
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